Lóri de Clarice



“pois que agora o terremoto serviria à sua histeria e agora que estava libertada podia até adiar para o futuro a decisão de não ver Ulisses: só que hoje queria vê-lo e, apesar de não tolerar o mudo desejo dele, sabia que na verdade era ela quem o provocava para tentar quebrar a paciência com que ele esperava; com a mesada que o pai mandava comprava vestidos caros sempre justos, era só isso que sabia fazer para atraí-lo e
estava na hora de se vestir: olhou-se no espelho e só era bonita pelo fato de ser uma mulher: seu corpo era fino e forte, um dos motivos imaginários que faziam com que Ulisses a quisesse; escolheu um vestido de fazenda, apesar do calor, quase sem modelo, o modelo seria o seu próprio corpo mas
enfeitar-se era um ritual que a tornava grave: a fazenda já não era um mero tecido, transformava-se em matéria de coisa e era esse estofo que com o seu corpo ela dava corpo – como podia um simples pano ganhar tanto movimento? seus cabelos de manhã lavados e secos ao sol do pequeno terraço estavam de seda castanha mais antiga – bonita? não, mulher: Lóri então pintou cuidadosamente os lábios e os olhos, o que ela fazia, segundo uma colega, muito mal feito, passou perfume na testa e no nascimento dos seios – a terra era perfumada com cheiro de mil folhas e flores esmagadas: Lóri se perfumava e essa era uma das suas imitações do mundo, ela que tanto procurava aprender a vida – com o perfume, de algum modo intensificava o que quer que ela era e por isso não podia usar perfumes que a contradiziam: perfumar-se era de uma sabedoria instintiva, vinda de milênios de mulheres aparentemente passivas aprendendo, e, como toda arte, exigia que ela tivesse um mínimo de conhecimento de si própria: usava um perfume levemente sufocante, gostoso como húmus, cujo nome não dizia a nenhuma de suas colegas-professoras: porque ele era seu, era ela, já que para Lóri perfumar-se era um ato secreto e quase religioso
– usaria brincos? hesitou, pois queria orelhas apenas delicadas e simples, alguma coisa modestamente nua, hesitou mais: riqueza ainda maior seria a de esconder com os cabelos as orelhas de corça e torna-las secretas, mas não resistiu: descobriu-as, esticando os cabelos para trás das orelhas incongruentes e pálidas: rainha egípcia? não, toda ornada como as mulheres bíblicas, e havia também algo em seus olhos pintados que dizia com melancolia: decifra-me, meu amor, ou serei obrigada a devorar, e
agora pronta, vestida, o mais bonita quanto poderia chegar a sê-lo, vinha novamente a dúvida de ir ou não ao encontro com Ulisses – pronta, de braços, pendentes, pensativa, iria ou não ao encontro? com Ulisses ela se comportava como uma virgem que não era mais, embora tivesse certeza de que também isso ele adivinhava, aquele sábio estranho que no entanto não parecia adivinhar que ela queria amor.




Uma Aprendizagem ou O livro dos Prazeres - Clarice Lispector

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